A Inacreditável Surya Carmesim
As primeiras
memórias de Surya são de um galpão abandonado na Saída Leste de Valkaria onde
as crianças sem lar se abrigavam nas noites de chuva: uma infiltração em forma
de coelho, o cheiro de fumaça quando não encontravam lenha boa e seca, os
buracos no telhado improvisado por onde o sol sempre arranjava um jeito de acordar
quem dormisse demais. Entre esmolas, furtos e pequenos serviços, as crianças abandonadas,
pivetes locais ou simplesmente órfãos sem passado só podiam contar com a
própria esperteza e a eventual caridade de uns poucos religiosos e comerciantes
locais. A maioria dos cidadãos era menos piedosa, porém, e não era raro que as
crianças de rua, sem ter quem olhasse por si, fossem achacadas, perseguidas e
coagidas, seja pela guarda da cidade, mercadores inescrupulosos ou bandidos
locais – especialmente se tinham habilidades mágicas que fossem de alguma
utilidade. Não se pode dizer que a vida fosse de todo ruim, apesar disso – alguns gatos nascem pobres; esses, porém, já
nascem livres, como canta a canção.
Tanto é que um
dia passou pela Vila Élfica, onde a pequena Surya estava entregando uma
mensagem em troca de dois tibares de cobre, a caravana mais maravilhosa que
alguém já viu! As cores, a música, o teatro de marionetes... Na verdade, era
bem pequena e decadente, e a ‘fera das terras distantes’ era só um gato pintado
que ficou gordo demais; mas foi o suficiente para Surya se esquecer da carta,
do pagamento, da punição por extraviar a mensagem e de tudo o mais. Ela seguiu
a trupe de artistas por todas as praças de Valkaria, pela Pequena Colina, e
então pela estrada, por grandes cidades e pequenas vilas, encantada com cada
número, cada história, cada artista até que, graças às suas habilidades, mágicas ou mundanas, se tornou um membro
bem-vindo e mesmo fundamental da caravana. Nos próximos anos, Surya viajaria
por toda Arton com seu setar sempre afinado, encenando autos dramáticos,
heroicos ou cômicos, encantando adultos e crianças de todas as raças e regiões
com pequenos truques e dádivas de Wynla; não há nada que um Qareen não faça em
troca de um sorriso – e alguns tibares, por que não?
14 primaveras,
4 trupes e muitas ressacas depois, a Inacreditável Surya é conhecida entre os
artistas do Reinado por seu perigoso número com adagas em chamas, quase tanto
quanto por seu cabelo escandalosamente vermelho, mais vibrante que o próprio
fogo, que lhe rendeu a alcunha de Carmesim (e que ela jura que é natural...
certamente o mercador de henna da Sambúrdia a confundiu com alguma outra
belíssima jovem encantadora). Seja como for, por muitas ou poucas moedas,
sempre há gloriosas tradições do passado para cantar, princesas mimadas para
imitar, jaulas para limpar, danças exóticas, acrobacias, figurinos sedutores a
serem costurados, destinos a serem revelados – ou ‘revelados’ – pelas cartas.
Mais aplausos, mais aplausos! Seguindo os preceitos da grande Valkaria, há
sempre um amor em cada porto – e um credor, um inimigo, um admirador, colega,
rival ou difamador fofoqueiro... Surya tem vários de todos eles, e mais algumas
aventuras, sufocos, bons e maus momentos, e todo tipo de história pra contar.
Basta puxar uma cadeira e encher seu copo...
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